Crônicas
Palimpsesto
São textos de pergaminhos ou de papiros, os quais, na Idade Média, eram apagados, e sobre estes, reescritos novas histórias.
Por: Sergio Damião em 5 de dezembro de 2023
São textos de pergaminhos ou de papiros, os quais, na Idade Média, eram apagados, e sobre estes, reescritos novas histórias. Carlos, em leito de Pronto Socorro do hospital, pensou na palavra e no que fazia com sua memória durante as horas em que se encontrava no compasso de espera por um diagnóstico da sua dor torácica. Durante a manhã, e o início da tarde, em pensamento, escreveu e reescreveu o seu passado. Refez sua história de amor e paixão pela Márcia; sua história com sua família (esposa e filhos) enquanto aguardava o desfecho do seu caso clínico, na esperança que ainda existisse tempo para um futuro. Ao reescrever, em pergaminho mental, perguntava-se a todo instante: ainda teria tempo de vida para mais histórias? Tempo… Pensava: Parece que foi ontem os encontros voluptuosos, as caricias e beijos, as horas de paixão com Márcia. Porém, se passaram vinte anos. Parecia uma eternidade sua presença no Pronto Socorro do hospital, passara-se seis horas. Apenas algumas horas… Sentia-se como Sísifo, personagem da mitologia grega, pela vida sem sentimento que vivera em seus últimos vinte anos. Carlos vivera desesperançado, com um vazio imenso. Alguns diziam: era o vazio de Deus, um absurdo da vida. Sísifo, nosso herói, mesmo condenado a levar uma pedra ao topo da montanha, mesmo sabendo que seria um trabalho inútil e sem esperança, pois ela rolaria montanha abaixo, ainda assim permanecia na labuta diária por amor ao nosso mundo. Nas últimas horas, deste dia de angústia, onde a morte o rondava, além de reescrever, em pensamento, seu passado; além da construção do seu palimpsesto, ele ouviu, no Pronto Atendimento, muitas histórias de pacientes e familiares. Ouviu do senhor que se encontrava ao lado da mulher, uma mulher em estado terminal, em tratamento de conforto, não seriam realizadas as manobras de ressuscitação, caso acontecesse a parada cardiorrespiratória. Carlos ouviu: “Ela passou a vida toda cozinhando o arroz para ele. No fim da vida ela perdeu a visão. Ele passou a cozinhar o feijão e o arroz. Passou a alimentá-la.” Como alimentamos um passarinho no início e fim de uma vida. Um vínculo de amor. Carlos, ao contrário, sentia que não criara nenhum vínculo. Permanecia sozinho.