Artigo

Covid-19: Não estamos no mesmo barco

O sentimento de perder o mundo pode ser coletivo e isso pressupõe o compartilhamento de um destino comum da humanidade, mas certamente, não estamos todos no mesmo barco singrando para o fim do mundo.

Por: Redação em 29 de maio de 2020

 

Ilona Szabó de Carvalho, colunista do jornal Folha de S. Paulo, que muito respeitamos, escreveu na sua coluna de 8 de abril de 2020, que “Somos todos vulneráveis ao vírus Sars-Cov-2”. O termo epidemiológico correto seria que “somos todos suscetíveis ao vírus Sars-Cov-2”, pois a vulnerabilidade é profundamente desigual entre as pessoas. Tenho certeza de que Ilona reconhece isso, pois seu artigo é justamente para dizer que “ninguém pode ficar para trás”.

Bruno Latour, influente filósofo francês, disse em uma entrevista ao jornal El País, em dezembro de 2019, que “O sentimento de perder o mundo, agora, é coletivo”, pois como disse Ilona em sua coluna, “Muitos finalmente perceberam que a humanidade é uma só e que somos interdependentes”.  Latour se referia à saúde do planeta terra, entretanto, penso, que nós não perderemos o mundo,  o mundo é que deixará de ter na sua superfície a raça humana se seguirmos na mesma toada os nossos modos de produção e consumo desiguais, injustos, supérfluos e excessivos.

O sentimento de perder o mundo pode ser coletivo e isso pressupõe o compartilhamento de um destino comum da humanidade, mas certamente, não estamos todos no mesmo barco singrando para o fim do mundo. Há transatlânticos, iates, lanchas, veleiros, escunas, caiaques, barcos a remo, jangadas, e até náufragos agarrados em troncos no meio da correnteza.

A famosa história do RMS Titanic que partiu de Southampton na Inglaterra, em 10 de abril de 1912, na direção de Nova York, nos Estados Unidos, e que na noite de 14 de abril em 1912 se chocou com um iceberg no Atlântico Norte resultando no seu naufrágio é a evidência maior de que o lugar que se ocupa na sociedade  importa no seu risco de morrer.

VULNERABILIDADES DISTINTAS

Todos a bordo sofreram as consequências do naufrágio (mesma suscetibilidade), mas as vulnerabilidades eram distintas: Sobreviveram 62% dos passageiros na primeira classe, 41% na segunda, e apenas 25% dos que estavam na terceira classe. Esse debate nasce da necessidade imperiosa de que uma política social comprometida com a promoção da equidade não deveria borrar as diferenças entre classes sociais, gêneros, raças, etnias, territórios e países.

Explicitar, desocultar, medir diferenças é o ponto de partida para a formulação de uma política pública justa. Abrir esse diálogo, também é fruto de inquietações a respeito da universalidade em saúde, reconhecendo que para legitimá-la é necessário comportar o direito à diferença, tendo em vista que não se trata mais de um padrão homogêneo, mas de um padrão equânime.

Nesse sentido, a Covid-19 nos coloca mais uma vez o desafio ético-político e, também, técnico-operacional muito bem pontuados por Teixeira e França Junior em recente artigo para Folha de São Paulo, de tratar de forma diferente os desiguais, pois como disseram eles

“Precisamos ampliar a mobilização social para o auto confinamento, mitigando as consequências indesejáveis,  prioritariamente para as populações mais vulneráveis que, de outra forma, não teriam condições de aderir ao distanciamento social”.

E esse é outro aspecto relevante do debate sobre diferenças que são os determinantes sociais do processo saúde-doença-cuidado.  Se os fatores de risco explicam as causas das doenças, os determinantes tratam da distribuição das causas.

E aqui a incômoda palavra diferença volta ao palco, pois em cada barco há um modo de produzir vida e os consequentes efeitos dessa produção no corpo, na mente, na alma, no território, na cidade e na natureza. Em outras palavras, importa o lugar que vivo, que moro, que trabalho, que amo na determinação do processo-saúde-doença-cuidado.

Philipe Verdan –  Co-Fundador Instituto 90 Graus – Instituição Especializada em Administração Pública, Ética e o Princípio de Moralidade – www.instituto90graus.com.br