Crônicas
Caminhando e cantando
Uma das decisões dessa quarentena foi colocar para funcionar um Karaokê que estava desativado. E voltei a cantar, não tenho voz mas tenho sentimentos, e eles desabrocham profundamente enquanto entoou as canções.
Por: Marilene Depes em 6 de julho de 2020
Uma das decisões dessa quarentena foi colocar para funcionar um Karaokê que estava desativado. E voltei a cantar, não tenho voz mas tenho sentimentos, e eles desabrocham profundamente enquanto entoou as canções. Meu repertório é eclético, às vezes canto Roberto Carlos, ou Maria Betânia, ou Wando, ou Caetano, ou Demônios da Garoa, ou só músicas em inglês. Mas minha paixão é Chico Buarque, que muitas vezes não consigo cantar porque começo a chorar, não de tristeza e sim de profunda emoção. Chico fala à minha alma, suas letras tocam no mais íntimo do meu ser. Certa ocasião, em São Paulo, peguei um táxi e fui num local distante assistir Chico. Se me perguntarem um dos meus sonhos, após essa pandemia, é ter vida e saúde para repetir o feito.
Hoje, especialmente, decidi cantar músicas de protesto ou de cunho social, das quais cito: Que país é esse; Gente Humilde; Saudosa maloca; Romaria; O Bêbado e o equilibrista; Alegria, alegria; O Cálice; Apesar de você; até que cheguei em Pra não dizer que não falei das flores. Comecei a cantar e desabei em prantos, talvez esteja mais sensível por conta da quarentena, ou talvez pelo fato de tardiamente ter tomado conhecimento do que foi a ditadura militar no Brasil. Recordo-me que cursava História numa faculdade de freiras e lá não se discutia esse tema. Só me lembro de um colega de turma, muito sacana, que fazia um outro colega sumir de aula quando comunicava que os militares estavam chegando na faculdade. Quando comecei a lecionar, a matéria Moral e Cívica foi incorporada para preencher carga horária, e professora nova e inexperiente repetia o que estava nos livros a respeito de patriotismo e amor ao Brasil. Só bem mais tarde, através dos livros, documentários, filmes e entrevistas, fui tomando noção da realidade. Durante a ditadura eu me casei, tive três filhos, fiz duas faculdades e lutei muito pela sobrevivência e independência. Não havia muito tempo para questionamentos. Quando já trabalhando na Prefeitura me interessei pelos movimentos comunitários, participei das reuniões das associações de moradores e entendi, em profundidade, de onde podia-se pensar em mudanças que amparassem os desfavorecidos. E hoje me considero uma militante, atuo nos Conselhos de Direitos e grupos em defesa das minorias. E nesta infeliz quarentena, quando assisto na TV os manifestos em prol da democracia e antirracismo, me vejo no meio da multidão, e é tão forte o meu sentimento que sou transportada em espírito, e grito e vibro junto, talvez numa tentativa de compensar o tempo perdido.