Música

Como Roberto Carlos revolucionou a música brasileira

Não é chamado de Rei por acaso: é o cantor brasileiro mais popular de todos os tempos. Talvez haja quem só lembre dele como uma caricatura. Mas não tem como fugir: dos anos 1960 para cá, é impossível passar ileso por Roberto no Brasil.

Por: Redação em 19 de abril de 2021

 

Roberto Carlos completará 80 anos na próxima segunda-feira (19). Não é chamado de Rei por acaso: é o cantor brasileiro mais popular de todos os tempos. Talvez haja quem só lembre dele como uma caricatura, aquele artista de mullets que veste terno branco ou azul e fala “são tantas emoções”, geralmente no especial da TV Globo de final de ano. Mas não tem como fugir: dos anos 1960 para cá, é impossível passar ileso por Roberto no Brasil.

Seu especial virou uma tradição no final de ano da família brasileira, tal qual o panetone e o peru no Natal. “Roberto continua lindo”, comenta alguém na reunião de família. “Chorando de novo com Outra Vez, tia?”, surpreende-se um sobrinho. “Você já viu ele de bermuda?”, questiona o parente que faz a piada do pavê. É difícil viver no Brasil e desconhecer músicas como Detalhes, Amigo, Como É Grande o Meu Amor por Você, Emoções, entre tantas outras — são mais de 600. De tão impregnado no cotidiano do país, talvez haja quem se esqueça o que ele fez para ser considerado majestade, mas é sempre bom ressaltar: Roberto Carlos foi revolução.

Nascido em Cachoeiro do Itapemirim (ES), começou a se apresentar ainda criança na rádio local, cantando boleros ou sambas-canções. Chegou a ter aulas de piano e violino no conservatório da cidade antes de mudar-se para Niterói (RJ), em 1956. No subúrbio carioca, aproximou-se do rock e integrou a banda The Sputiniks, que contava também com Tim Maia (1942-1998). Foi nessa época que conheceu Erasmo Carlos, maior e mais prolífico na composição.

Mas, ao ouvir João Gilberto no final dos anos 1950, o jovem artista ficou deslumbrado, voltando seu repertório para a bossa nova. O primeiro disco, Louco por Você (1961), transitava entre bolero e bossa, arranhando algo de rock. Contudo, o talento aflorou de vez ao assumir a verve roqueira. Sem sucesso com o álbum de estreia, Roberto Carlos estava com os dias contados na gravadora CBS. Porém, a saída de Sérgio Murillo do selo abriu espaço para um novo ídolo jovem.

Com músicas como Marcianita, Estúpido Cupido e Broto Legal, Murilo era o rei do rock brasileiro até então. Mas se desentendeu com executivos da empresa, indo para a geladeira. Roberto foi a nova aposta roqueira do gerente-geral da CBS, Evandro Ribeiro. E, com Splish Splash (1963), que além da faixa-título traz Parei na Contramão, começou a vislumbrar a popularidade. A partir dali, a carreira decolou progressivamente com O Calhambeque, É Proibido Fumar, Quero que Vá Tudo pro Inferno, entre outras.

Entre 1965 e 1968, ao lado de Erasmo Carlos e Wanderléa, Roberto apresentou na TV Record de São Paulo (também ganharia uma versão na TV Rio) o programa Jovem Guarda, cujo título dá nome ao movimento protagonizado pelo trio. Foi nessa fase que o cantor virou uma coqueluche, consolidando-se o maior ídolo jovem no país. Nem Beatles o ofuscou por aqui: era o capixaba quem vendia mais discos no Brasil.

Em 1966, Roberto Carlos recebeu informalmente o título de “o rei da juventude” no programa Buzina do Chacrinha. Em seguida, flertou com o soul, mas acabou abraçando sua veia romântica no repertório, o que foi fundamental para estender o reinado a outras faixas etárias e a todas as classes sociais.
O músico Roberto Frejat, que em 1994 produziu um tributo ao cantor intitulado Rei, destaca o feito de sair de ídolo jovem para amadurecer com o seu público — algo completamente singular no cenário brasileiro e que, segundo o ex-integrante do Barão Vermelho, nem Elvis Presley conseguiu.
— Ele saiu de um perfil de público compatível com Elvis para virar um artista com público compatível com Frank Sinatra. E fez isso com muita categoria — atesta Frejat.

Roberto Carlos não fez sucesso por acaso. Levou inúmeros “nãos” e insistiu muito: fez shows em circo tendo somente os palhaços como público — em um deles, foi atingido por um mamão na cara —, percorria um roteiro de rádios para tomar chá de banco, lançou músicas sem repercussão. Quando chegou lá, era o primeiro grande artista brasileiro desvinculado dos ritmos nacionais, como frisa o historiador Paulo Cesar de Araújo na biografia Roberto Carlos em Detalhes (2006). Antes dele, ídolos populares como Francisco Alves, Carmen Miranda, Orlando Silva, Luiz Gonzaga e Nelson Gonçalves consagraram-se sobretudo com sambas, baiões, marchinhas, entre outros gêneros identificados às raízes da música do Brasil. “Mais radical do que Carmen Miranda, aquela que teria voltado americanizada: Roberto Carlos já surgiu americanizado”, escreve Araújo no livro.
— Ele não foi o primeiro a gravar rock no Brasil, mas antes todos os roqueiros estavam à margem, somente adaptavam versões. O rock de Roberto e Erasmo era de alcance nacional — realça Araújo.

O historiador também comenta na biografia que cantores de bolero como Anísio Silva sempre estiveram à margem do debate, considerados como sem maiores consequências. Ou seja, o cantor instaurou uma linguagem do pop rock na música brasileira. Autor da biografia Roberto Carlos: Por Isso Essa Voz Tamanha, que está prevista para ser lançada nesta segunda de aniversário do Rei, o jornalista Jotabê Medeiros destaca que Roberto e Erasmo trouxeram um toque autoral ao rock nacional:

— A dupla encontrou uma linguagem própria para o rock do país, incorporando as influências estrangeiras, mas também misturando a elas ritmos nacionais e imprimindo uma dose brasileira de picardia e anarquia .
Frejat assinala:
— Roberto e Erasmo fizeram o rock existir em português.

Roberto Carlos

 

Eletrificado
Paulo Cesar de Araújo diz que Roberto foi um divisor de águas. Ao estourar com Quero que Vá Tudo Pro Inferno, ele mudou o rumo da música brasileira, que até então pendia para uma produção identificada com as raízes locais. Houve, por isso, quem se postasse de maneira defensiva contra o jovem cantor. Geralmente, artistas que seguiam uma linha mais tradicional da música brasileira ou eram engajados politicamente.
A Roberto Carlos deve-se a institucionalização da sigla MPB (Música Popular Brasileira). Araújo aponta que, após o Rei despontar, a música de origem universitária (ou a “nova bossa nova”) passou a ser chamada de MPB. Em um primeiro momento, a sigla teria um caráter nacionalista. Roberto, assim, era um artista “estrangeiro”.

— A MPB surge nesse embate com Roberto. Era usada para dizer: “Nós fazemos música popular brasileira. Aquilo ali não, é alienado e alienígena” — salienta o biógrafo.

A sigla ganharia outro sentido com o passar do tempo, no entanto. Hoje é consenso que a música brasileira é toda a sonoridade feita por brasileiros — que tanto pode ser samba, forró, rock, reggae, funk ou a mistura disso tudo.

Mas o conflito foi além da sigla: no dia 17 de julho de 1967, foi realizada em São Paulo a curiosa Marcha contra a Guitarra Elétrica. Liderados por Elis Regina, nomes da MPB, como Geraldo Vandré e Gilberto Gil, marcaram presença. Segundo os manifestantes, a adoção desse instrumento estrangeiro poderia “manchar” as raízes da música nacional. Conforme Araújo, tratava-se de uma publicidade disfarçada: incentivada pela TV Record, a passeata tinha como objetivo promover o programa O Fino da Bossa, apresentado por Elis. De qualquer maneira, a manifestação é um indicativo do frisson que Roberto e comparsas causavam.

O cantor e compositor Frank Jorge, que também é coordenador do curso de produção fonográfica da Unisinos, ressalta que Roberto Carlos mudou a música pop brasileira de várias formas. Começando pela cozinha:

— Ao aderir ao rock, trouxe convicção na formação instrumental baixo, guitarra, bateria e órgão, à semelhança do pop rock internacional e diferentemente dos padrões de músicos dos estúdios da época.

Autor de História & Música: História Cultural da Música Popular (2002), o historiador Marcos Napolitano destaca que Roberto consolidou o mercado de música jovem no país com essa instrumentalização:

— Incluir essa sonoridade eletrificada ajudou a abrir caminho para o rock feito no Brasil.

Como resume Araújo, Roberto trouxe a guitarra, instrumento àquela época já consolidado internacionalmente, para o primeiro plano da música brasileira.
O historiador acrescenta que Roberto ajudou a incrementar a venda de instrumentos no Brasil, o que inclui a popularização definitiva do violão. Antes do Rei, João Gilberto e a bossa nova contribuíram para uma maior aceitação do instrumento, que, como escreve Araújo, era estigmatizado — associado ao malandro ou boêmio. Ao contrário do repertório da bossa nova, repleto de acordes dissonantes, as canções de Roberto são fáceis de reproduzir. E assim, a eletrificação da música popular do país espalhou-se nos anos 1960, junto à abertura nos costumes e tradições, processo continuado pelos tropicalistas.

— Roberto influencia até o sertanejo que viria eletrificado depois. Ele interfere no pagode romântico e nessas vertentes todas que se deixaram influenciar ela linguagem pop — diz Araújo.

Show em Cachoeiro

O cantor Roberto Carlos anunciou a sua volta ao Espírito Santo para realizar um show em comemoração pelos seus 81 anos. O show será em sua cidade natal, Cachoeiro de Itapemirim, no dia 19 de abril de 2022. “A ideia de Roberto Carlos era fazer agora, no dia 19 (na próxima segunda-feira), quando irá completar 80 anos. Mas como não foi possível em função da pandemia, ele adiou para o ano que vem”, disse o assessor de imprensa do artista, Maurício Aires.