Artigo

Retrato de sonhos

Não houve tempo para pensar, foi consumido pelos esforços estudantis. Ficaram os sonhos distantes, pois: o carro demorou a vir, o cigarro não fumei e na casa nunca morei.

Por: Sergio Damião em 9 de novembro de 2020

Quando criança ficava imaginando o futuro. Tentava adivinhar o preço do cigarro quando alcançasse a adolescência, uma dependência tolerável na época; adivinhar a cor do carro a ser adquirido; a casa da minha moradia e o emprego desejado. Acalentava o desejo de tudo isso acontecer no lugar onde nasci e cresci. A adolescência passou como um meteoro. Não houve tempo para pensar, foi consumido pelos esforços estudantis. Ficaram os sonhos distantes, pois: o carro demorou a vir, o cigarro não fumei e na casa nunca morei. Com o passar dos anos, numa cidade distante da infância, os sonhos se modificaram. A casa foi substituída pela segurança do apartamento e a cor do carro já não importava tanto. Com o tempo lembramos cada vez menos dos nossos sonhos. Vivemos o que os filhos, netos e pessoas próximas aspiram. O que desejamos não importa tanto. Não decidimos, consentimos. Seus desejos são os nossos desejos. Seus sonhos tornam-se os nossos sonhos. Ainda que não percebamos. Às vezes imagino voltando no tempo. Ficaria no meio do caminho, o medo é de perder o contato com a realidade atual. Apesar da alegria de rever os tempos idos, o medo da perda, do conquistado, não nos deixa voltar aos sonhos. Permanecemos estáticos. Acho que deve ser isto: medo. Por mais cativante que seja sonhar, não nos permitimos. Temos medo do novo. Agarramos-nos ao presente. O máximo que nos permitimos é voltarmos com as lembranças — a memória é o único caminho permitido. Apenas nas lembranças que permitimos outra vida. A coragem de ir em frente fica num passado longínquo. A coragem adormece. Perdida na adolescência. Crescemos e atingimos a idade adulta em meio às dúvidas do viver diferente. Crescemos entre sonhos e busca de realizações imediatas. Pouco a pouco abandonamos os desejos oníricos da infância. Difícil resgatá-los. Mais ainda é vivê-los. Necessitaríamos de outra vida. Das fotografias gravadas em memória, as melhores se encontram na memória de infância. Caso tenham descolorido, sempre existirá um tempo de atualizá-las, mesmo que retornem em preto-e-branco durante o dia ou na noite. Devendo ser feito com os olhos bem abertos, em plena consciência dos nossos atos. Senhores dos nossos desejos, ainda que tardio. Talvez seja isso, viveremos melhor quando oferecermos às crianças a possibilidade de realizarem seus sonhos.