Crônicas

Desinteresse Prematuro

Estava em São Paulo, era fim de tarde, e no crepúsculo, meu neto Bernardo disse: olha vovô! Vovô Sergio, uma estrela.

Por: Sergio Damião em 25 de outubro de 2021

Estava em São Paulo, era fim de tarde, e no crepúsculo, meu neto Bernardo disse: olha vovô! Vovô Sergio, uma estrela. Lembrei-me de Louise Gluck: “Esta noite, pela primeira vez em muitos anos, me apareceu de novo/ uma visão do esplendor da terra:/ no céu de fim de tarde/ a primeira estrela parecia/ ficar mais brilhante/ à medida que a terra escurecia/ até que afinal ela não pôde escurecer mais” e da mineira Ana Martins Marques: “[…] Gosto de tentar adivinhar/ o pensamento das pessoas/ gosto de pensar que o pensamento/ é um inquilino incendiário./ Uma coisa que nunca entendi é por que/ em geral se acredita que o poema/ não é lugar para pensar.” Dias depois, em Vila Velha, próximo à areia da praia, João Vitor, meu neto mais novo, ainda sem esboçar as palavras, com o dedo indicador apontava o céu e me mostrava os passarinhos. Eu caminhava… Deixei o tempo passar, simplesmente não agi, as palavras das poetisas foram o bastante. Após o episódio com os meus netos, achei que nada me interessaria, nada seria capaz de me provocar alguma reação. Em Cachoeiro, revi alguns textos. Sobre desinteresse prematuro, o romancista português (Antonio Alçada) usa a frase e se pergunta se ainda há interesses que nos restam. Lembra: A vida da maior parte das pessoas foi gasta em coisas que não valiam a pena e que o sistema de aspirações que escolheram era de uma pobreza atroz. Alçada se atreve a reconhecer que não realizou o mais importante na sua vida, que, infelizmente, não consegue, ainda, saber bem o que é. O que busca é fugir à frase que caracteriza a velhice e o médico diz a respeito dos moribundos: Esse já está desinteressado… No texto derradeiro, A Cegueira e o Saber, Afonso Romano de Sant’Anna conta uma lenda em que uma praga atingi os mongóis e entre os doentes havia um jovem chamado Tarvaa, seu espírito deixa o corpo e chega ao lugar dos mortos bem antes que o chamassem. Comovido, o governante local permite que retorne e leve o que desejasse. Tarvaa diante das alegrias e riquezas preferiu a arte de contar histórias. Ao retornar constatou que os corvos já lhe haviam arrancado os olhos. Como não podia desobedecer ao governante, ele reentrou em seu corpo e viveu cego, porem conhecendo todos os contos e levando pela Mongólia alegria e saber para todas as pessoas. Conclui: Narrar é uma forma de sobreviver e afastar a morte. Assim foi em As mil e uma noites com as peripécias de Sherazade.