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Festa das Canoas: Tradição e Fé em Marataízes

Algumas versões atribuem a origem da festa a milagres, como a promessa feita por pescadores em meio a uma temporada de pesca ruim, comprometendo-se a realizar uma procissão marítima anual caso a situação melhorasse

Por: Redação em 7 de março de 2025

 

A fé é um fenômeno complexo e de difícil explicação, assim como as origens da centenária Festa das Canoas, cercada por diversas narrativas que, embora distintas, compartilham uma mesma essência: a crença de que tudo pode melhorar. Não se sabe ao certo quem foram os primeiros pescadores nem quais motivações os levaram a celebrar o Divino Espírito Santo. Algumas versões atribuem a origem da festa a milagres, como a promessa feita por pescadores em meio a uma temporada de pesca ruim, comprometendo-se a realizar uma procissão marítima anual caso a situação melhorasse. Outras histórias mencionam a cura da filha de um pescador, que teria motivado a criação da celebração, enquanto há relatos que associam a festa à sobrevivência de tripulantes após um naufrágio, os quais teriam prometido instituir o evento como forma de agradecimento.

 

Independentemente da versão, há 115 anos surgiu a mais tradicional festividade de Marataízes, intimamente ligada à história da cidade. Um grupo de pescadores e suas famílias decidiram reunir-se para celebrar o Divino Espírito Santo, realizando a festa anualmente após o término da temporada de verão.

 

No início do século XX, o turismo começou a ganhar impulso mundial. No Espírito Santo não foi diferente, famílias do interior da região sul do estado, ao viajarem durante o verão, encantavam-se com as praias do litoral de Marataízes. Acreditavam que o contato com aquele ambiente belo e bucólico traria benefícios para a saúde, a alma e a vida como um todo. A Estrada de Ferro Sul do Espírito Santo (EFSES), concluída na década de 1920, facilitou o acesso de visitantes, especialmente de Cachoeiro de Itapemirim, que se maravilhavam com as paisagens litorâneas.

 

 

Além dos tradicionais visitantes de Cachoeiro de Itapemirim, Marataízes também passou a atrair mineiros, provavelmente em razão da antiga estrada que ligava Itapemirim a Mariana. Esses turistas adquiriam peixes frescos ou salgados dos moradores locais, que utilizavam canoas e o famoso arrasto para a pesca. As áreas próximas à atual praia central começaram a ser ocupadas por casas de veraneio, construídas por famílias que buscavam o litoral durante a temporada de verão. Enquanto os homens se dedicavam à pesca, as mulheres trabalhavam como empregadas domésticas, cozinheiras, faxineiras ou babás. Os meses de dezembro, janeiro e fevereiro, período de alta temporada, sempre representaram e ainda representam uma fonte de renda essencial para os moradores de Marataízes.

 

Mas, caro leitor, você já se perguntou por que a Festa das Canoas ocorre em março? O que realmente motivou a criação desse momento tão belo e repleto de inspiração espiritual? Sabe-se que, tradicionalmente, a segunda semana desse mês é dedicada à celebração do Divino Espírito Santo, uma festividade profundamente enraizada na cultura católica. No início do século XX, com o surgimento do turismo, os pescadores passaram a obter renda extra durante o verão, trabalhando intensamente para atender aos visitantes que animavam as praias. Após meses de esforço na pesca e no serviço aos turistas, março representava um período de tranquilidade, um momento para descansar, mergulhar nas águas serenas de Marataízes, as “águas de março”, retornar à missa e expressar gratidão. Curiosamente, ou talvez não por mera coincidência quando se trata das coisas divinas, esse é justamente o mês dedicado ao Divino Espírito Santo, Divino que batiza nosso estado e simboliza o momento ideal para celebrar e agradecer pelas bênçãos recebidas.

 

A comunidade se reunia para celebrar e se divertir, em um momento de encontro e convívio entre todos. O som do tambor anunciava a chegada do Divino, e as moças ficavam olhando nas janelas, aguardando a passagem da bela procissão. A festa também era uma oportunidade de arrecadar recursos para a manutenção da igreja, com a participação de todos. Doações como prendas, alimentos e até mesmo animais, como galinhas e porcos, eram oferecidos como prêmios em bingos e leilões, que mobilizavam toda a sociedade marataízense. Além disso, após as missas, grandes rodas de jongo se formavam, onde os moradores se desafiavam com rimas, proporcionando diversão e entretenimento para inúmeras famílias da região.

 

 

O domingo era o dia mais aguardado da festa. Pela manhã, uma banda de fanfarra percorria as ruas da cidade, anunciando que a missa logo iria começar. Após a celebração religiosa, acontecia o ponto alto do evento: a procissão marítima. Nela, os participantes, acompanhados pelo Divino e pela fanfarra, embarcavam em barcos, todos decorados com bandeirinhas coloridas, confeccionadas por moradores de diversas religiões, não apenas católicos. Juntos, celebravam e expressavam gratidão a Deus, em um momento de devoção.

 

A Festa das Canoas cresceu paralelamente ao desenvolvimento das praias, evoluindo década após década. Cada avanço na vida dos pescadores refletia-se na organização e no aprimoramento da celebração. Mais do que uma manifestação católica, o evento integra-se profundamente à história da cidade, uma festa que une fé, cultura e memória, representando um marco na identidade local e na tradição maratimba.

 

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Texto escrito pelos irmãos Laryssa e Lucas Machado. Ambos são Historiadores, trabalham como professores de História, ela na Rede Municipal de Marataízes, ele na Sedu. São alunos do curso de Doutorado em História da Ufes e membros do Instituto Histórico e Geográfico de Itapemirim e Marataízes. Laryssa faz parte do Laboratório História, Poder e Linguagens (LHPL) e Lucas faz parte do Laboratório de História Regional do Espírito Santo e Conexões Atlânticas (LACES), ambos da Ufes.

 

Esse texto foi produzido com base nos depoimentos coletados pelos dois historiadores durante a produção do documentário “A Gloriosa Festa das Canoas”, lançado em 2024 com recursos da Secult de Marataízes.