Crônicas

Italiana pé de chumbo

Vim da roça para a cidade ainda criança, insegura e totalmente deslocada no novo ambiente. Filha temporã de pais idosos, naquela época quem tinha cinquenta anos usava roupas e seguiam costumes de velho.

Por: Marilene Depes em 19 de outubro de 2020

Vim da roça para a cidade ainda criança, insegura e totalmente deslocada no novo ambiente. Filha temporã de pais idosos, naquela época quem tinha cinquenta anos usava roupas e seguiam costumes de velho. Felizmente hoje nem se usa esse termo, as pessoas são idosas ou estão na terceira idade, velho virou pejorativo. Bem, imaginem uma criança com pais idosos, com sotaque estranho e costumes do interior. Só não éramos incultos, em nossa casa lia-se, meus pais assinavam revistas religiosas, as seleções Reader’s Digest e compravam outras mais. Mas eu morria de vergonha porque observava que nas casas que eu frequentava a geladeira ficava na cozinha ou na copa, e na nossa casa ficava na sala como um troféu a ser exposto, afinal na roça não tínhamos nem eletricidade. Vergonha do banheiro em que chuveiro, vaso sanitário e bidê ficavam todos juntos, não havia box separando. O que não me envergonhava era o jardim, com flores lindíssimas, rosas, dálias, cravos, era o mais lindo da rua. E havia uma parreira que cobria toda área e que produzia uvas deliciosas.
Bem, mas uma família vizinha não perdoava o fato de eu ter vindo da roça e todas as vezes que passava as crianças gritavam da janela: – Taliana pé de chumbo, calcanhar de frigideira, nunca te dei confiança, de casar com brasileiro. Aquele canto entoado de forma debochada me deixava com muita vergonha. Sofri bulling quando ele nem existia, fui precursora.
Fato é que italiano tem pés feios e batatas das pernas grossas, e eu naturalmente inserida no padrão. Dominei os pés com sapatos fechados e confesso que sempre os considerei desconfortáveis, mas em prol da elegância fui insistente em reprimir a natureza. E nessa pandemia, por falta de demanda e por precaução, não tenho vida social, portanto pés largados dentro de tênis ou sandálias.
E após seis meses de reclusão sou convidada para um jantar em ambiente social e elegante. Vesti-me, felizmente mantive o peso às custas de muita caminhada, mas quanto tentei calçar os scarpins, só entraram três dedos e pedindo socorro. Troquei por uma sandália alta que usava para dançar, e o sentimento de tortura persistiu, o caminhar pesado e inseguro, exatamente como o de homens que se vestem de mulheres no carnaval e saem tropeçando em tudo. E ainda ouvindo a voz interior ressoar – Taliana pé de chumbo, calcanhar de frigideira…