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“The Nevers”: série da HBO quebra estereótipos sobre a era vitoriana

Com lançamento previsto para o dia 11 de abril, a produção idealizada por Joss Whedon gira em torno de um grupo de cidadãos comuns que, após serem atingidos por um fenômeno sobrenatural em meados de 1896, recebe habilidades excepcionais – é o caso de Amalia e Penance.

Por: Redação em 7 de abril de 2021

 

À primeira vista, Amalia True (Laura Donnelly) e Penance Adair (Ann Skelly) não são em nada diferentes das mulheres da era vitoriana, trajadas com vestidos longos e espartilhos apertados. Indo além das aparências, no entanto, os atributos da dupla central de The Nevers, nova série de ficção científica da HBO, passam longe do trivial: enquanto a primeira é capaz de ver “flashes” do futuro, a segunda cria tecnologias elétricas à frente de seu tempo.

Com lançamento previsto para o dia 11 de abril, a produção idealizada por Joss Whedon (Os Vingadores) gira em torno de um grupo de cidadãos comuns que, após serem atingidos por um fenômeno sobrenatural em meados de 1896, recebe habilidades excepcionais – é o caso de Amalia e Penance.

Perseguidos pelo governo e categorizados pela imprensa como “aberrações”, os “Tocados” – como o grupo é apelidado – são, em sua maioria, mulheres. De força manual brutal à capacidade de fazer as pessoas revelarem segredos próprios (e alheios), os poderes das personagens femininas também incluem disparar fogo pelas mãos. E as cenas com esse elemento, segundo o elenco da série, vão além de imagens geradas por computador (CGI, na sigla em inglês). “Gravamos com fogo de verdade”, assegura Rochelle Neil a GALILEU. “Quando o lanço no ar, uma equipe se rasteja pelo chão para que ninguém seja atingido, e toda vez que estou no set uso esponjas protetoras nas mãos”, revela a atriz, que interpreta a personagem Annie Carbey – ou Bonfire (“Fogueira”, em português).

Mas os dotes extraordinários nem sempre oferecem benefícios aos Tocados. Na esmagadora maioria das vezes, quando descobertas pelo olhar alheio, as habilidades tornam-se motivo de assombro social. “Como pessoas assim podem despertar confiança?” perguntam-se aristocratas, vendedores e a mãe de uma criança que faz parte do grupo. “Uma coisa interessante sobre a série é que ela mostra que, mesmo quando as diferenças são invisíveis, a sociedade ainda consegue criar divisões e barreiras de interação”, observa Kiran Sonia Sawar, que dá vida à jovem siquista Harriet Kaur, cujo poder consiste em converter objetos em gelo.

Não à toa, uma espécie de vila-orfanato serve de abrigo para meninas e mulheres integrantes do grupo. Além das restrições impostas pelas características sobrenaturais, essas personagens femininas também têm de lidar com impedimentos de outra categoria: os do período vitoriano. A jovem Kaur, por exemplo, está decidida a advogar pelos Tocados, mas, à semelhança das outras mulheres de sua época, não pode exercer o direito ao voto – ou, ao menos, ingressar em uma universidade de Direito.

Se não fizer parte da Justiça, questiona a personagem em um diálogo na primeira temporada da série – que, além de Whedon, conta com roteiro das cineastas Jane Espenson, Madhuri Shekar e Melissa Iqbal –, como essas mulheres verão equidade na Londres vitoriana? “Em um mundo onde as pessoas estão usando violência e força física para fazer mudanças, ela quer usar a legislação e a democracia para provocar mudanças a longo prazo”, diz Sawar em entrevista por videoconferência à reportagem.

Durante o século 19, a política ainda estava longe de ser vista como uma esfera de atuação para o público feminino. À época, o pensamento vigente na Inglaterra considerava que as mulheres – independentemente de sua estirpe social – não teriam “capacidade cerebral” para comandar a máquina pública. O ambiente doméstico, defendia-se então, seria seu lugar de origem. Mas o panorama começaria a mudar a partir de meados de 1830, quando o “feminismo vitoriano”, atestado sobretudo na literatura produzida durante o período, emergia como uma força política potente.

Essa efervescência de ideias que marcou os últimos anos do reinado de Vitória também parece ser resgatado – nas entrelinhas – na série. “Uma coisa que eu diria que é único em The Nerves, entre as séries dramáticas dessa época, é que nós conhecemos essas mulheres e elas já estão à frente de seu tempo”, observa Ann Skelly, intérprete da personagem que confecciona ferramentas elétricas (Penance). “Elas não estão exatamente percebendo ‘oh, é possível ser diferente’, elas já estão tentando viver desse modo diferente”, analisa a atriz irlandesa.

Humor

A tentativa de quebrar estereótipos em torno das mulheres do período foi o que atraiu Laura Donelly para assumir o papel da protagonista Amalia na série. “Você não espera assumir o papel de uma mulher da era vitoriana que seja independente e tenha tantas qualidades”, diz à GALILEU a intérprete da jovem cuja habilidade é visualizar o futuro – ainda que entrecortado. O panorama, opina a atriz, não costuma ser diferente por trás das telas. “Quando você é mulher, não se depara facilmente no meio artístico com propostas de personagens que vão além do superficial”, avalia, em entrevista virtual.

Descrita pelos aristocratas do período como “a líder da praga feminina”, Amalia assume, junto w Penance, a missão de travar uma luta contra os inimigos que se levantam ao redor dos Tocados. Quando a dupla contracena, outra característica pouco comum em dramas que retratam a época também toma lugar: o humor. As duas têm personalidades diametralmente opostas. Enquanto Amalia é firme e misteriosa, Penance é oscilante e transparente.

Para Donnelly, o elo de amizade entre as duas personagens não deixa de compartilhar semelhanças com uma das duplas mais conhecidas da ficção de origem britânica: Sherlock Holmes e Watson, figuras criadas pelo escritor Arthur Conan Doyle (1859-1930). “Seres humanos são seres humanos independentemente da época, se estão usando saias longas e corpetes ou não”, concorda Skelly. “Eles têm senso de humor, passam por momentos de luto e também irônicos”.

Da porta para fora

Quando pesquisava informações sobre a era vitoriana, o elenco de The Nevers não esperava encontrar outro lado pouco conhecido do período – alheio até para os atores de origem britânica: os clubes de sexo. Se da porta das casas para dentro reinava o pudor, o mesmo não podia ser dito sobre o lado de fora de Londres, onde a luxúria imperava em inúmeros bordéis.

Embora relatórios da polícia da cidade registrem a existência de aproximadamente 8.600 prostitutas durante o período, historiadores sugerem que esse número chegava perto de 80 mil. Más condições de trabalho e subemprego são alguns dos motivos que teriam empurrado milhares de mulheres para a prática no século 19.

Menos interessada nas circunstâncias sociais de quem frequentava as casas privadas de sexo, a série chama a atenção para o quanto esses espaços, em meio ao excesso de pudor moral característico da época, funcionavam quase como válvulas de escape para a sociedade. “Essa dicotomia entre repressão e liberdade é o que mais me surpreendeu sobre a era vitoriana”, conta a GALILEU James Norton, intérprete de Hugo Swan, jovem pansexual e proprietário de um prostíbulo londrino. “Naquela época, se fosse descoberto como gay, Hugo iria para a prisão”, observa o ator – a afetividade homossexual era tipificada como crime na Grã-Bretanha naquele período.

Aprender mais sobre esse lado oculto daqueles tempos também foi o que marcou o primeiro contato de Tom Riley com seu papel, o de Augustus Bidlow – personagem que ajuda na manutenção financeira do bordel de Swan, às escondidas. “Toda vez que você lembra dessa época da história, pensa em repressão e puritanismo”, opina o britânico. “Ver que o erotismo ajudava aquela sociedade repreendida a se libertar foi fascinante”.

Representatividade

Ideias feministas efervescentes e bordéis à parte, o imaginário comum acerca da era vitoriana também traz pouco – ou nenhum – volume de referências que vão além de pessoas brancas. Não foi nas aulas do sistema de educação britânico que o ator Zackary Momoh, por exemplo, conheceu histórias de pretos vitorianos que, invariavelmente, não fossem escravos. “Nesse período existiram muitos pretos e imigrantes bem-sucedidos, professores, músicos, médicos, alfaiates, artistas, e isso permaneceu coberto na Inglaterra do século 19”, avalia o intérprete de Horatio Cousens, um médico cujo poder é curar enfermidades. “Foi surpreendente, mas muito legal de descobrir”, conta o britânico-nigeriano a GALILEU.

Rochelle Neil, atriz que dá vida a Bonfire, espera que a diversidade do elenco ajude a desconstruir estigmas sobre o período (Foto: HBO/Divulgação)

 

Rochelle Neil, atriz que dá vida a Bonfire, também espera que a diversidade do elenco ajude a desconstruir estigmas sobre o período. “A série coloca muitas pessoas diferentes em um mesmo mundo e o mais importante é que elas sempre existiram”, avalia a britânica. “Espero que o público assista e perceba que você pode ter um personagem preto em uma série sobre esse período que não seja necessariamente um escravo”.

 

Fonte: “The Nevers”: série da HBO quebra estereótipos sobre a era vitoriana – Revista Galileu | Séries (globo.com)