Crônicas

Quero-Quero

Os centros das cidades se assemelham bastante, basta olharmos para o alto dos morros tomados pelas casas sem pinturas e rebocos. Lembram uma cidade que nasceu velha, como descreveu Euclydes da Cunha, em Os Sertões.

Por: Sergio Damião em 2 de maio de 2024

Os centros das cidades se assemelham bastante, basta olharmos para o alto dos morros tomados pelas casas sem pinturas e rebocos. Lembram uma cidade que nasceu velha, como descreveu Euclydes da Cunha, em Os Sertões. Um Antônio Conselheiro em cada ponto do morro, a polícia tentando dominar todos os dias, e todos os dias são rechaçados. Fica a impressão de que após cem anos, o sertão de Canudos transformou-se em nossos morros. Canudos ocupando os espaços vazios dos morros, todas as noites. Em Cachoeiro não é diferente. Mas, temos os nossos segredos, basta transpor, a poucos minutos do centro, a última barreira, o antigo Morro do Lixo. Adiante, no alto da chapada, o Clube dos Médicos. Felizmente vazio em seu maior espaço de tempo. Os poucos felizardos podem admirar o gavião equilibrando-se em uma pequena estaca. As estacas formam a cerca e separam o Clube do pasto. O quero-quero sobrevoa o local. Ao lado, bois e vacas pastam em liberdade. A luminosidade forte nos corpos dos animais parece anestesiá-los. O bater das asas do predador afugenta o quero-quero, voa para longe, e nos deixa solitários. Nunca fui entendido em terras, passarinhos, bois, vacas e muito menos em aves de rapina, as predadoras. Poucas vezes me interessei por essas aves e animais. Porém, fico alegre com o interesse de uma criança, e acho bonito o cuidado dos adolescentes com os animais e aves. Mesmo em apartamento, sem o espaço adequado, se interessam em cultivar a couve verde para o alimento do canário. São pequenos detalhes que mantém vivo uma natureza em extinção. Tempos atrás, me surpreendi com Vitor, meu filho mais novo, em dia de domingo ensolarado e praia exuberante, sol alto e forte, apesar disso tudo, alimentava um filhote de periquito. Com paciência usava uma seringa e, de gota a gota, enchia o papo do pequeno pássaro. Quando criança, um dos contadores de casos do bairro onde morava, falava de suas aventuras, gostava de impressionar a meninada com seus feitos. Dizia ter visto um grande animal que soltava fogo, o espetáculo foi visto em uma das noites passadas no cemitério, parecia um boi, contava. Outra vez, falou do Boto que raptou uma das moças do bairro. Histórias de onças, cobras… Eu, nunca fiquei sabendo se era verdade, quando chegava já tinha iniciado o contar do causo e saía antes que terminasse. Acompanhei parte das histórias. Mas, os medos, ainda carrego comigo.