Crônicas

Encantamento das emoções

O que existe de ruim no processo autoritário é que ele começa desfigurando as instituições e acaba desfigurando o caráter do cidadão.

Por: Wilson Márcio Depes em 16 de novembro de 2020

Dizer que este ano foi um ano perdido, apesar de todas as tristezas, confesso que não sinto soar completamente assim. Dramaticamente vivi a pandemia – e estou vivendo -, com mortes de amigos queridos, a enchente do rio Itapemirim com pessoas desalojadas, e por aí vai. Porém, como para tudo há uma compensação, chega o final do ano com a espetacular vitória de Biden no EUA e a derrota dessa figura estúpida chamada Trump, que, por certo, vai ser varrido, para sempre, do mundo político. Aprendi com Tancredo Neves que o processo autoritário traz consigo o germe da corrupção. O que existe de ruim no processo autoritário é que ele começa desfigurando as instituições e acaba desfigurando o caráter do cidadão. Daí a minha repulsa a Trump e seus seguidores em que nível for. Paro o texto para uma constatação. Coisa interessante o inconsciente. Depois do resultado da eleição, que comemorei muito, depois de noites de insônia com medo de uma reviravolta, acabei por dormir de cansaço. Curiosamente, sonhei com o filme “Central do Brasil”, que, afinal, retoma o projeto que fascinou o Cinema Novo: mostrar o Brasil escondido ao Brasil oficial. As personagens que partem em busca do país, dos pais ou das emoções perdidas vão revelando, no mesmo movimento, o mais íntimo de si e o mais íntimo de uma terra que amedronta e seduz. Depois da viagem, não serão mais as mesmas. A apatia converte-se em ação, a indiferença em solidariedade, e o desprezo em confiança. Como em toda bela fábula moral, Central do Brasil não se preocupa em doutrinar. Contenta-se em mostrar, sugerir e convidar a quem quiser para que vá e veja. Em seguida, a cada um segundo sua vontade e de cada um segundo sua possibilidade. Não sei se adequada ou inadequadamente, Hannah Arendt dizia que a modernidade ocidental abandonou a grandeza da Antiguidade pelo encantamento das emoções privadas. Num momento em que o público e o privado parecem ter perdido o sentido, Walter Salles conseguiu fundir grandeza e encantamento num filme terno, lírico e humanamente aberto para o mundo. Acordei, afinal, com um pouco de esperança, pensando que um dia tudo pode dar certo, apesar de nosso capitão.