Crônicas

Inversão de valor

Quando se comenta, horrorizado, que um menino brincando no quintal da sua casa foi morto por policiais, alguém logo questiona porque não se revolta com a morte de tantos policiais em serviço.

Por: Marilene Depes em 15 de junho de 2020

Quando se comenta, horrorizado, que um menino brincando no quintal da sua casa foi morto por policiais, alguém logo questiona porque não se revolta com a morte de tantos policiais em serviço. Quando se leva uma cesta básica para uma família com fome, questiona que com uma cesta básica não se vai resolver a fome do mundo. Quando alguém decide alimentar um cachorro de rua, se critica a preocupação com animais e não com as crianças abandonadas. E se revolve adotar uma criança, tem sempre um parecer contrário citando a genética negativa e as possibilidades daquela criança se tornar um problema futuro.
Um exemplo concreto é vivenciado por um grupo, entre familiares e amigos, que realizam um projeto de atendimento à população de rua. Eles dedicam os domingos a preparar e entregar alimentos, e no inverno recolhem e distribuem agasalhos e cobertores. Enfim, eles cuidam dos mais miseráveis dos miseráveis, os desamparados, sem teto, em geral viciados, que não conseguem se inserir no mercado de trabalho e vivem na total marginalidade. Como esse povo é invisível durante o dia e se reúne em guetos à noite, é nesta hora que se realiza a distribuição, e enquanto entregam o alimento, de vez em quando ouvem alguém, que dentro de um carro grita que são eles os responsáveis pela manutenção dessa escória nas ruas. Na ótica do egoísmo os benfeitores sustentam e mantém a marginalidade.
As pessoas que fazem esse tipo de crítica, em geral, querem justificar a própria omissão e hipocrisia moral. Os que mais reclamam são preguiçosos, vagabundos que não fazem nada por ninguém, nem pelos animais de rua, nem pela criança abandonada, nem pelos famintos, nem pelos policiais, nem por ninguém, só reclamam e se omitem. Segundo o texto bíblico do Apocalipse, cap. III, vers. 16, “ Assim porque és morno, e não és frio e nem quente, vomitar-te-ei da minha boca.” O frio se acovarda, o quente age e o morno é omisso, fica em cima do muro criticando quem faz. Deus dá a um dom a cada pessoa, e ao colocar esse dom a serviço, por pouco que seja, é possível tentar transformar o mundo num lugar melhor para se viver, sem tantas injustiças. E nesta pandemia em que as diferenças sociais são gritantes, e em que as mortes se avolumam e atingem as favelas, a tragédia vai-se tornando invisível. Que não sejamos insensíveis ao povo que clama por solidariedade.