Crônicas
Lágrimas
Derramei uma lágrima dias atrás, era um fim de tarde. Estava cansado, o corpo doía e não me animava para a caminhada ou exercício físico, algo raro na rotina dos meus dias.
Por: Sergio Damião em 4 de julho de 2022
Derramei uma lágrima dias atrás, era um fim de tarde. Estava cansado, o corpo doía e não me animava para a caminhada ou exercício físico, algo raro na rotina dos meus dias. Derramei lágrima: acho que foi uma. Não, foi mais de uma. Na verdade, conto agora, sem saber se realmente a derramei. Acho que imaginei ou senti um leve ardor em minha pálpebra. Tenho dúvidas se foi lágrima em minha face. O nosso tempo nos leva a isso: em meio às agressividades, e tristezas, surge a indiferença às coisas vistas no dia a dia. Em dias atuais, com as mazelas que vivemos e assistimos, com o agravamento do quadro social, com deterioramento das relações afetivas, com os comportamentos agressivos e suicidas, a dúvida procede. A lágrima ameaça retornar a todo instante. Assemelha-se a algo virtual, não parece pertencer ao nosso corpo. Não a sentimos de fato. Está fora de nós, distante, não a sentimos realmente. Assemelha-se a um filme, imagem fotográfica, uma tela de computador. Tempos atrás, quando no mundo real, derramei lágrimas pela médica – brutalmente assassinada pelo marido; lágrimas pelo suicídio do copiloto do avião nos Alpes franceses; pelas mortes de refugiados no mar mediterrâneo; pela adolescente estuprada pelo pai e pela prisão do irmão que tentava protegê-la das atrocidades. Lágrimas que desapareceram rapidamente. Demoraram o tempo de um piscar de olhos. O esquecimento, a seleção de memórias, o não lembrar, única forma de vivermos ou sobrevivermos. É… Mas não é tão fácil a montagem da rede de proteção sentimental. A todo instante ela é ultrapassada. Pois, somos humanos, a vulnerabilidade é imensa. Mais ainda com os sentimentos. Escondemos nossas lágrimas, acumulamos angústias. Na última semana derramei lágrimas pelos pacientes da UTI, pelas mulheres do Afeganistão; pela saudade do meu neto; pelo indigenista Bruno Pereira e o jornalista Dom Phillips e o cansaço físico e mental de médicos, enfermagem, fisioterapeuta, assistente social, psicólogo, nutricionista, atendentes, secretárias, maqueiros e todos os técnicos da área de saúde. Nesses tempos não deixam que as lágrimas se tornem salgadas. Quando não deixamos salgar a lágrima, elas podem até existir, e muitas serem de alegria. Difícil é separar momentos, aceitar adversidades. Quanto a mim, por tudo que vi, ouvi e senti, nos últimos tempos, produzi lágrimas, ou pelo menos a sensação, pois, mais não fiz.