Crônicas

Prisioneiro do mar

Encontrava-se agitado. Sentia-se distante, solto no ar, no espaço, no universo. Na mente, buscava o infinito. Talvez fosse essa a explicação para a escolha de sua moradia preferencial - o mar.

Por: Sergio Damião em 3 de novembro de 2020

Encontrava-se agitado. Sentia-se distante, solto no ar, no espaço, no universo. Na mente, buscava o infinito. Talvez fosse essa a explicação para a escolha de sua moradia preferencial – o mar. Em alto-mar sentia-se livre. Fora dali não o entendiam. Em terra firme, confiná-lo no manicômio foi a solução. Em terra firme incomodava a sociedade. Amedrontava os vizinhos e envergonhava os familiares. Internado permaneceu. Um tempo longo sem avistar o mar – seu repouso, sua melhor medicação e verdadeira terapia. Não entendiam suas necessidades e carências. A cada agitação, a cada grito, mais reação. Remédios, novas drogas. Falava, mas não escutavam. Não ouviam o grito dos excluídos mentalmente. Continuava gritando, cada dia mais forte. Cada dia mais alto. Quem sabe assim passariam a ouvi-lo. Agredia. Procurava chamar a atenção. Algo incomodava. Eram lembranças estranhas. Em suas lembranças encontrava-se sozinho. A solidão assustava. Os remédios ajudaram por um breve tempo – curto tempo. Suficiente para rotularem como melhoras – a volta da lucidez e a normalidade. Logo percebera a realidade. Enxergava no pátio a presença de muitos pais, muitas mães, muitos irmãos, menos os seus. Foi o bastante. Nova agitação. Os remédios não mais aliviavam a tensão, agitava-se mais e mais. Temia o choque. Uma alternativa terapêutica já experimentada. Temia o choque, isto o traria de volta a terra dos homens da terra firme. Temia o choque: trazia as lembranças das agressões da casa dos pais. Buscava o mar. Queria o mar. Queria o mar de sua infância, da sua adolescência. Sonhava… Nunca entendera as agressões sofridas em casa. Não aceitavam suas diferenças. Procurou ajuda, não encontrou. Tentava falar: não era ouvido. Por fim, buscou o mar, bem no fundo. Onde morava a melhor lembrança. Foi acolhido. Ao término da leitura da crônica, ao perceber a agonia e aflição do personagem, que bem poderia ser um de nós desse mundo louco da pandemia, deparei-me com um pouco de poesia em Sintonia para pressa e presságio de Paulo Leminski: “Escrevia no espaço./ Hoje, grafo no tempo,/ na pele, na palma, na pétala,/ luz do momento./ Sôo na dúvida que separa/ o silêncio de quem grita/ do escândalo que cala,/ no tempo, distância, praça,/ que a pausa, asa, leva/ para ir do percalço ao espasmo./ Eis a voz, eis o Deus, eis a fala,/ eis que a luz se acendeu na casa/ e não cabe mais na sala.”