Crônicas

Quem sou eu?

Informamos nome, idade, altura, peso, cor de olhos, cor da pele, nome da mãe e do pai, nos identificamos fisicamente. Uma exigência da sociedade civil.

Por: Sergio Damião em 6 de setembro de 2022

Informamos nome, idade, altura, peso, cor de olhos, cor da pele, nome da mãe e do pai, nos identificamos fisicamente. Uma exigência da sociedade civil. Poucas vezes nos mostramos como pessoa. Nunca por inteiro, de corpo e alma. Nem mesmo em nossas convivências mais intimas. Procuramos nos esconder. Somos aquilo que deixamos ver ou como nos vêem. Enganamos a nós mesmos (fabricamos o auto-engano). Isto é: quem somos de fato? Mesmo por toda uma vida, quase sempre, permanece o mistério. Muitas vezes, em uma ação ou comportamento, nos surpreendemos. Surpreendemos pessoas do nosso convívio. Anos atrás, em um segundo domingo de maio, visitei minha mãe. Minha mãe foi um exemplo de cuidadora em extinção. Sem nenhuma técnica, apenas com o amor fraternal, cuidou do esposo até seu último dia de uma doença renal. Com os cuidados dispensados ele obteve uma “boa morte”, faleceu em casa sob o olhar daqueles que ele amava. Meses depois do falecimento, ela gradativamente perdeu a memória. No dia, ao entregar um dos sapatos, presente pelo dia das mães, mesmo sem lembrar o meu nome, disse: “Onde está o outro pé?” Foi o que disse e voltou ao mundo das não lembranças. Voltou ao mundo desconhecido. Um aparente desaparecimento histórico. Descartes escreveu: “Penso, logo existo”. Será que existimos sem o pensamento? Para pensar precisamos lembrar. Necessitamos da memória. Ao sair da casa das minhas irmãs, saí diferente. Visitei uma pessoa, encontrei um corpo com vazio cerebral. Um cérebro vazio de recordações. Lembrei por ela. Assim, ela continua existindo, existirá sempre enquanto eu manter minhas lembranças. Lembrei as coisas da infância: o caderno de caligrafia e a tabuada que não me deixava esquecer. Coisas miúdas da infância e adolescência; coisas da minha identidade e da construção da minha alma. Crescemos com nossos pais nos dizendo quem somos. Na idade adulta, procuramos alguém que assuma o lugar dos pais. Com o tempo perdemos referências, ficamos perdidos em busca de uma resposta. Perdidos, podemos deixar aflorar a agressividade adormecida. Coletivamente, ou individualmente, esquecemos de lembrar que somos humanos. Sendo assim, vigilância deve existir a todo instante para não despertar o mal existente em cada um de nós.