Crônicas

Ousadia

Ele me olhou de forma estranha e informou que todas as pessoas importantes estavam no velório. Novamente respondi que não sou importante e só vou a velórios de parentes ou amigos, e que nessa pandemia tenho restringido mais ainda minha presença.

Por: Marilene Depes em 7 de junho de 2021

Adentro na academia de ginástica em plena segunda-feira e um colega me questiona porque eu não estava no velório de uma figura bastante proeminente, respondi que não fora porque o falecido não era alguém da minha convivência. Ele me olhou de forma estranha e informou que todas as pessoas importantes estavam no velório. Novamente respondi que não sou importante e só vou a velórios de parentes ou amigos, e que nessa pandemia tenho restringido mais ainda minha presença. Percebi claramente que o fato de eu não ter ido causou bastante estranheza ao colega, que insistia em falar das inegáveis qualidades do morto, com as quais estou totalmente de acordo. Reconhecer o valor de uma figura pública não me obriga a estar presente à sua cerimônia fúnebre.
Lembro-me de uma história contada por Ariano Suassuna, em que ele fora convidado para um jantar em casa de ricaços da sociedade. Chegou na hora marcada e ninguém servia a comida, quando começaram a passar salgadinhos a fome era tanta que ele pegava aos punhados, de tanta fome. Daí o casal que fizera o convite se aproximou e quando o marido apresentou Ariano à esposa, ela perguntou: – o senhor já foi a Disney? Ele respondeu que não e ela fez um muxoxo de desprezo. Se aproximou deles outro convidado e após as apresentações a senhora perguntou: – o senhor já foi a Disney? Com a resposta positiva ela virou para o marido e declarou: – está vendo, ele foi a Disney! Tal acontecimento fez Ariano concluir que para aquela senhora havia no mundo duas categorias de pessoas, as que foram a Disney e as que não foram. E o fato ocorreu com o renomado dramaturgo, romancista, ensaísta, poeta, professor e advogado.
Imagine eu, uma simples mortal, se posso ter a ousadia de não me fazer presente no sepultamento de uma figura de grande valor para a sociedade? Como Suassuna, cheguei a conclusão que existem duas categorias de pessoas, as que comparecem aos velórios das figuras públicas e aquelas como eu, que não comparecem. A impressão que ficou é que o colega fez um juízo muito ruim da minha atitude. Para muitos a liberdade de escolha é um mérito, para outros é sinônimo de rebeldia, e quem ousa ser diferente causa incômodo. Lembrei-me do livro A Pérola, de John Steinbeck, que li há muitos anos e cuja mensagem nunca esqueci. Conta a história de um índio que encontrou uma pérola de grande valor e as subsequentes perseguições e angústias que sofreu pelo fato de ter se tornado diferente dos demais da tribo. Cada um de nós tem a sua pérola e a minha chama-se liberdade.