Artigo
O que foi sem ter sido…
Os mais modestos livros de história revelam que as lutas mais longas e cruentas que se travaram no Brasil foram a resistência indígena secular e a luta dos negros contra a escravidão, que duraram os séculos do escravismo.
Por: Wilson Márcio Depes em 5 de junho de 2023
Vou repetir a crônica que não foi publicada. Aliás, que foi sem nunca ter sido. Falei – e nunca será tarde ou ultrapassado – sobre o massacre racial e a resistência do jogador Vini Jr. Ficou na gaveta. Concordo com Darcy Ribeiro, criador dos Cieps: a distância social mais espantosa no Brasil é a que separa e opõe os pobres dos ricos. A ela se soma, porém, a discriminação que pesa sobre negros, mulatos e índios, sobretudo os primeiros. Entretanto, a rebeldia negra é muito menor e menos agressiva do que deveria ser. Não foi assim no passado.
Os mais modestos livros de história revelam que as lutas mais longas e cruentas que se travaram no Brasil foram a resistência indígena secular e a luta dos negros contra a escravidão, que duraram os séculos do escravismo. Tendo início quando começou o tráfico, só se encerrou com a abolição. Sua forma era principalmente a da fuga, para a resistência e para a reconstituição de sua vida em liberdade nas comunidades solidárias dos quilombos, que se multiplicaram aos milhares.
Ora, o quilombola era um negro já aculturado, sabendo sobreviver na natureza brasileira, e, também, porque lhe seria impossível reconstituir as formas de vida da África. Seu drama era a situação paradoxal de quem pode ganhar mil batalhas sem vencer a guerra, mas não pode perder nenhuma. Isso foi o que sucedeu com todos os quilombos, inclusive com o principal deles, Palmares, que resistiu por mais de um século, mas afinal caiu, arrasado, e teve o seu povo vendido, aos lotes, para o sul e para o Caribe.
A luta mais árdua do negro africano e de seus descendentes brasileiros foi, ainda é, a conquista de um lugar e de um papel de participante legítimo na sociedade nacional. Nela se viu incorporado à força. Ajudou a construí-la e, e esse esforço, se desfez, mas, ao fim, só nela sabia viver, em função de sua total desafricanização. A primeira tarefa do negro brasileiro foi a de aprender a falar o português que ouvia nos berros do capataz. Teve de fazê-lo para poder comunicar-se com seus companheiros de desterro, oriundos de diferentes povos. Fazendo-o, se reumanizou, começando a sair da condição de bem semovente, mero animal ou força energética para o trabalho. As atuais classes dominantes brasileiras, feitas de filhos e netos de antigos senhores de escravos, guardam, diante do negro, a mesma atitude de desprezo vil. É o que se constata. Cruelmente.